terça-feira, 1 de julho de 2008

Ser bicho.

Eu tô há dias pensando em escrever o que vou escrever, mas sem tempo, porque eu tô trabalhando muito, organizando minha vida financeira e com moderada sensação de que não vou conseguir dizer exatamente o que quero dizer.
Eu tava no ponto de ônibus semana passada e chegou um mendigão. Daqueles BEM sujos, de cabelão. Bem sujo. Pretinho de sujeira. Aí rolou aquela gradação de pensamentos de sempre: 'ih, que merda, será que o cara vai me assaltar?', 'ai, que cheiro péssimo...', 'ai, será que ele vai encostar em mim quando me assaltar? pq devem ter vários piolhos e , er.', 'ai, que merda, cara, esse cara não é cara, é bicho...', 'Como, o que acontece, como será que o cara transcendeu e perdeu totalmente a noção de higiene?', 'cara, que merda alguém virar uma coisa que não é 'alguém'; é 'isso'. Eu sempre penso as mesmas coisas. Acho incompreensível uma pessoa deixar de ser pessoa pra virar bichinho, vira-lata. Logo, acho que todas são malucas. E eu tenho medo de gente maluca. Esse tipo de gente maluca. Eu acho que a total falta de higiene - em que a pessoa faz xixi e cocô na roupa, que não toma banho há anos, que dorme no lixo e come o que dorme - é o que faz a pessoa deixar de ser pessoa pra ser bicho.
Tá, enfim. Daí eu tava lá no ponto, com medo do moço-bicho. E veio caminhando um moço-bicho-fodeu, falando com ódio com o chão. Falando sobre o demônio. O moço-bicho levantou, pegou as coisas e ficou olhando, de longe, com medo. O mesmo medo que eu tava sentindo, que as pessoas do ponto estavam sentindo. Ele esperou o moço-bicho-fodeu ir embora pra voltar pro lugar em que tava sentado.
Eu senti uma coisa tão 'uau, irmão' por ele, que tudo mudou. Eu olhei no olho dele com cara de 'ih, que merda, loucão'. E, cara, ele tinha olho. Tinha expressão, tinha medo. Era gente de novo. E era frágil, porque teve medo. Eu fui embora muito encucada, tentando entender como a minha percepção pôde mudar tão rápido e tão seriamente. Porque o moço-bicho é moço-bicho; mas é moço, só moço, quando aparece alguém mais bicho que ele. Como se existissem gradações para bichice.
Deu pra entender?

12 comentários:

ju coniglio disse...

deu pra entender. eu não tenho medo desses moços-bichos, tem um assim por aqui, com cabelão dread de verdade, se veste sempre de preto (não sei por quê), andou um tempo com a calça rasgada aparecendo a bunda. daí hoje passei por ele, nunca tive medo dele, ele fede mas não mexe com ninguém. mas é um bicho, sempre tive essa impressão bicho dele. daí ele olhou pro cachorro, eu tava com toby, olhou pro cachorro com cara de gente que olha um cachorro filhote na rua. sabe, normal? assim, normal.

na verdade na verdade eu tenho medo só é de pivete. mendigo sujão não faz nada, só fede. e pode te pedir alguma coisa, sei lá. mora um na porta do meu prédio antigo, mó cara de sujo, mal-encarado. nunca mexeu com ninguém e nunca fedeu. enfim.

marta disse...

Juliana, deve ser o mesmo moço que conheço daí do flamengo. Tb nunca tive medo dele. Teve um dia em que ele estava com um sobretudo daqueles grandões e quando as pessoas (principalmente mulheres) passavam, ele abria o sobretudo, como se estivesse pelado. rsss...

E aí tb tem o "ôô"... que fica gritando: "ôô". rs...

Esses malucos não me incomodam, a não ser pelo cheiro, se ficarem muito tempo perto (enjoa) e talvez um pouquinho de medo dependendo da agressividade.

Mas admito que tenho preconceito muito feio com certas coisas desse tipo. Quando vejo alguém com aparência "ruim", já penso longo: "ai, que saco, lá vem me pedir dinheiro ou ficar enchendo o saco". Uma vez pensei isso de um garoto meio hippie que veio na minha direção e ele só queria saber onde parava o ônibus pra niterói. Me senti tão mal!

marta disse...

Muito bom, Juli!

=D

AR disse...

Deu, claro.
E é impressionante como dá pra imaginar a sua cara assiatindo a uma cena dessas, bicho.
Deu pra ouvir sua entonação lendo esse post.
Saudades de vc, porra!

Clarissa disse...

Juli Lispector :)

Clarissa disse...

...essas coisas me deixam pensando muito, Juli. De um segundo p outro, nosso mundo estruturadinho de significados x=y, z>p passa a valer nada.

Escreve mais?

Geisy disse...

Juli, esse post saiu do seu útero. Ele é MUITO a sua cara!

Eu acho que, quando o cara tá totalmente excluído da sociedade e conseqüentemente das normas sociais que nós criamos, fica muito fácil ter esse comportamento meio primitivo. Não só de ficar sujo, mas inclusive de jogar um paralelepípedo na cabeça do outro por causa de cachaça, entre outras coisas.

Em outra escala, é a mesma coisa que acontece com uma pessoa que tá viajando no meio do mato... Se você passa o primeiro dia sem tomar banho, dali pra frente começa a achar supernatural que isso aconteça, e não tem mais que ficar arrumadinha, nem cherosa, e a água não tem mais que ficar livre de bactérias, e se cair um besouro na sua comida, você simplesmente dá um peteleco e continua comendo... As regras de conduta são readaptadas, enfim.

Aí fica mais fácil entender pq as pessoas se matam com uma facilidade tão grande quando moram em condições muito adversas, tipo na rua ou ema favela muito bizarra. Nosso comportamento "civilizado" é totalmente construído pelo meio; se você sai das condições perfeitas, acaba deixando o primitivismo aflorar. Isso sim é a natureza; o resto é o nosso fingimento.

Geisy disse...

P.S.: À noite eu sou mais otimista.
P.S.²: Desconsiderem a "ema" que resolveu dar as caras no comentário, hehe

marta disse...

Sempre que surge esse tipo de assunto me lembro do filme Trocando as Bolas.

Juliana disse...

geisy,
eu concordo muito com vc. com tudo.
quando fui, drogatita, a são thomé, vivi um pouco disso. passei um dia sem banho e deitar no meio da rua me parecia absolutamente normal. fiquei sem pudores, sem critérios. não só pela droga. era meio 'ou vc entra naturalmente no clima e desapega ou pira'. e desapegar de bobagem, creio, é pinto perto do desapego da 'civilidade'.
ai, não tô conseguindo escrever tudo que tô pensando. beijo. he!

Guadalupe B disse...

hahhahahahahaah!!
Um menino meio hippie... Ótimo, Marta.. Eu entendo a sua confusão.

Aqui do Alto disse...

poizé, texto com a cara da autora. mais juliana impossível!