sábado, 1 de dezembro de 2007

Fantasia

(...)
Já naquele tempo eu gostava de criar meu próprio breve exílio, onde seria rainha de um momento.

O esconderijo podia ser embaixo da mesa na sala – eu me considerava invisível atrás da toalha comprida, de franjas; sob a escrivaninha de meu pai; dentro de um armário; entre arbustos no jardim.

Era uma forma de ficar tranqüila para ruminar coisas apenas adivinhadas, ou respirar no mesmo ritmo do mundo: dos insetos, dos talos de capim.

Era um jeito de ter uma intimidade que pouco me permitiam: criança que demais quieta podia estar doente, demais isolada devia andar triste, demais sonhadora precisava de atividades e ocupações. Disciplina sobretudo, disciplina para compensar aqueles devaneios e a dificuldade de me enquadrar.

Então às vezes eu arranjava uma imaginária concha onde me sentia livre. Eu tentava nem respirar, para que não se desfizesse a magia.

Era também um proteger-me não sabia bem de quê. Ali nenhum aborrecimento cotidiano, nenhum mal me alcançaria. Eu não sabia bem que ameaça era aquela, mas era onipresente, onipotente e perturbadora.

Rodeando a casa havia hortênsias de tonalidades azul-pálido, azul-cobalto, arroxeadas, lilases ou totalmente violeta, em vários tons de rosa, do brilhante ao quase branco. Eram o meu castelo verde-escuro de onde brotava o inexplicado das cores.

Mas a castelã de trancinhas finas não agüentava muito tempo, logo emergia coberta de pó, e corria para a certeza do que era familiar.

Outras vezes, audaciosa, eu me afastava mais da casa e me deitava de costas na terra morna no meio de uns pés de milho no pomar. Ver o céu daquele prisma, recortado entre as folhas como espadas, era espiar por muitas portas. A perspectiva diferente que dali, deitada, eu tinha do mundo e de mim mesma era como balançar na borda de um penhasco bem alto, acima do mar.

Depois vinha o susto: o real era este aqui debaixo ou aquele, móvel e livre?

Antes que a mãe chamasse, antes que o jardineiro viesse me buscar, eu me assustava e queria de novo o simples e o familiar. Fantasia demais seria uma viagem sem volta?

Ninguém – nem eu mesma – me encontraria, nunca mais?
(...)
(Lya Luft - Pensar é Transgredir - crônica Mais Infância)

Levanta a mão quem passou (e/ou ainda passa) por isso!!! \0_

=)

7 comentários:

Juliana disse...

_o/

ainda bem que a gente vai ganhando segurança e saindo da concha.:)

Anônimo disse...

Hum... lembrei da minha infancia... puxa vida. regressão total...rs. Que frio na barriga,

marta disse...

Com o tempo saímos da concha. Mas ainda hj faço essas coisas.´Me sinto tão bem!
De qualquer forma, temos que sair da concha para vivermos normalmente no mundo real. Só que acho uma tristeza as pessoas perderem essa capacidade de fantasiar.

marta disse...

Regressão, Clara? Eu imaginei! =)

Frio na barriga de bom ou de ruim? rs...

Clarissa disse...

Imaginou? Quer dizer que imaginou em lugar de regredir, é isso? :c/

Frio na barriga de... frio na barriga. De medinho. Não sei, não.

marta disse...

Imaginei que vc se lembraria da sua infância.

Eu tb lembrei a minha. E dá mesmo um frio na barriga. Mas hj sinto um friozinho bom. Eu era muito criança mesmo! Fantasiava direto e me divertia muito sozinha mesmo, sem traumas.
Só que cresci e por um tempo deixei essas coisas de lado.
Hj consegui resgatar essa minha característica. Acho que por isso estou me sentindo bem! =)

ps: vejam Ponte para Terabítia.

Anônimo disse...

É, eu me lembrei mesmo. E lembrei de umas coisas que não lembraria espontaneamente, daí o frio na barriga, rs.

Vou ver o filme :c) Bjkas.