terça-feira, 23 de dezembro de 2008

"sentimento de não-pertinência ao mundo cotidiano"


Laura Brown está tentando se perder. Não, não é bem assim - está tentando se manter, entrando num mundo paralelo.

(...)

Ela escova os dentes, escova os cabelos e começa a descer. Pára vários degraus acima do fim da escada, escutando, esperando; está de novo possuída (parece estar piorando) por uma sensação meio onírica, como se estivesse nos bastidores, próxima da hora de entrar em cena e atuar numa peça para a qual não está adequadamente vestida e para a qual não ensaiou como devia. O quê, pergunta-se, estaria errado com ela. É seu marido que está na cozinha; e seu filhinho. Tudo que homem e menino exigem dela é sua presença e, claro, seu amor. Ela vence o desejo de voltar em silêncio lá para cima, para sua cama e seu livro. Vence a irritação que lhe causa o som da voz do marido dizendo alguma coisa a Richie sobre guardanapos (por que será que a voz dele a faz pensar às vezes numa batata sendo ralada?). Ela desce os três últimos degraus, atravessa um hall estreito e entra na cozinha.

(Michael Cunningham - As Horas)

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