A - Não ouso querer não o ouvir... Mas tenho medo...
2º - O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor. Cada um de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.
1º - Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.
2º - Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não é desiludir-se é acostumar-se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.
1º - Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?
2º O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão que o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão... Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.
A - Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!
B - Não, agora já não pode ser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar, Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.
A - Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.
B - Não, é porque eu sei quanto tu me não podes amar... Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna - o Homem e a Mulher...
A - Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes... Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?
B - Não podemos deixar de querer compreender. Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma... Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!
A - Agora podemos sonhar... Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.
B - Não... Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensámos... Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhámos o amor e vimos que ele era uma estátua vã... Olha, tolda-se o céu... Levanta-se o vento. Vai chover...
A - Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado... Tu...
B - Nada devia ser comigo é... Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.
A - Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivesses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor... Porque me olhas assim tão diferente e alheado?
B - Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos levas. Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer - é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de abismo.
A - Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares. Vai depressa, vai depressa. Chove mais.
---
Trecho de 'Diálogo no jardim do palácio', um dos textos da peça Pessoas. Hoje foi o último dia no SESC e a partir do dia 05/06 estará no Sérgio Porto.
Vale a pena, mas aviso: são 4 textos acontecendo ao mesmo tempo, com 4 atores que se revezam fazendo os textos. Podemos acompanhar um texto de cada vez e ir mudando a cada ciclo ou ver o mesmo texto com atores diferentes (as interpretações mudam) ou ver tudo ao mesmo tempo \o/. É meio enlouquecedor.
=)
2º - O nosso amor é parecido com o sonho porque não é senão a superfície do amor: O meu amor é impossível como realidade, possível só com amor. Cada um de nós, no nosso amor, não ama senão a si, no amor; sonha em voz alta e é ouvida. Sonha com o corpo, com os beijos, com os braços.
1º - Dir-lhe-ei que o não amo. Que melhor amante que tu? És mulher como eu e amando-te é a mim que me posso amar.
2º - Realizar o amor é desiludir-se. Quanto não é desiludir-se é acostumar-se. Acostumar-se é morrer. Por mim só amei na minha vida, e amo, a um estrangeiro de quem não vi mais do que o perfil, a um cair de tarde, quando estávamos numa multidão.
1º - Mas ele sabe que o amas? Se ele não sabe que tu o amas de que serve amá-lo?
2º O meu amor é o meu e está em mim e não nele. Que tem ele comigo senão que o amo? Se eu o conhecesse a nossa primeira palavra seria a nossa primeira desilusão... Valerá a pena amar o que podemos ter? Amar é querer e não ter. Amar é não ter. O que temos, temos, não amamos.
A - Se, apesar de tudo, nós nos amássemos!
B - Não, agora já não pode ser. Descobrimos num momento o que os felizes atravessaram a vida sem descobrir, e os mais infelizes levam muito tempo a achar. Descobrimos que somos dois e que por isso não nos podemos amar, Descobrimos que não se pode amar mas só supor que se ama.
A - Ah mas eu amo-te tanto, tanto! Tu se dizes isso é porque não imaginas quanto eu te amo.
B - Não, é porque eu sei quanto tu me não podes amar... Escuta-me. O nosso erro foi pensar no amor. Devíamos ter pensado apenas um no outro. Assim, descobrimo-nos, despimo-nos da ilusão para vermos bem como éramos e vimos que éramos apenas como a ilusão nos fizera. No fundo não somos nada senão Dois. No fundo somos uma epopeia eterna - o Homem e a Mulher...
A - Oh, meu amor, não pensemos mais, não pensemos mais. Amemos sem pensar. Maldito seja o pensamento! Se não pensássemos seríamos sempre felizes... Que tem quem ama com o saber que ama, com pensar amor, com o que é o amor?
B - Não podemos deixar de querer compreender. Quanto mais penso em tudo, mais tudo se me resolve em oposições, em divisões, em conflitos! Mataste de todo a minha felicidade! Agora mesmo que eu quisesse sonhar, nem isso podia fazer. O mundo é absurdo como um quarto sem porta nenhuma... Que alegria se não pensássemos, e que horror o havermos pensado!
A - Agora podemos sonhar... Vem. E não penses mais, não olhes mais para o amor.
B - Não... Agora é impossível. Podemos não pensar, mas não esquecer que pensámos... Sejamos fortes e separemo-nos agora para sempre. Oxalá nos possamos esquecer e esquecer que sonhámos o amor e vimos que ele era uma estátua vã... Olha, tolda-se o céu... Levanta-se o vento. Vai chover...
A - Já não ouso dizer-te que te amo, mas amar-te-ei sempre. Tu não me devias ter amado... Tu...
B - Nada devia ser comigo é... Fomos infelizes, mais nada. A curva desta estrada foi tal que dela vimos o amor e não pudemos amar mais.
A - Tu não me amaste nunca. Se tu me tivesses amado, tu não podias dizer isso. Se tu me tivesses amado tu não pensavas no amor, pensavas em mim. Sim, agora está tudo acabado, mas porque entre nós nunca houve senão o meu amor. Amaste-me talvez porque pensaste que eu te amava ou que te devia amar. Não sei porque me amaste, mas não foi por me teres amor... Porque me olhas assim tão diferente e alheado?
B - Porque reparo agora em quão pouco sabemos do que somos, do que pensamos, do que nos levas. Subiu-me agora à compreensão o que tudo isto é de complexo e absurdo. Não nos podemos compreender. Entre alma e alma há um abismo enorme. O que nós descobrimos afinal foi isso: eu vejo-o e tu não o queres ver. Mas eu descobri mais, ao reparar que não sei o que devo fazer - é que entre nós e mim próprio se abre um abismo também. Andamos como sonâmbulos numa terra de abismo.
A - Adeus, sê feliz e esquece-me. Não te demores que chove mais. Na curva da estrada há uma árvore grande onde te abrigares. Vai depressa, vai depressa. Chove mais.
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Trecho de 'Diálogo no jardim do palácio', um dos textos da peça Pessoas. Hoje foi o último dia no SESC e a partir do dia 05/06 estará no Sérgio Porto.
Vale a pena, mas aviso: são 4 textos acontecendo ao mesmo tempo, com 4 atores que se revezam fazendo os textos. Podemos acompanhar um texto de cada vez e ir mudando a cada ciclo ou ver o mesmo texto com atores diferentes (as interpretações mudam) ou ver tudo ao mesmo tempo \o/. É meio enlouquecedor.
=)
7 comentários:
ps: pode dar pra deduzir, mas eu tinha que ter escrito... os textos são do Fernando Pessoa.
eu vi uma apresentação teatral assim uma vez e não gostei muito. lembra, cindy? eu me emocionei com os textos, porque eram textos que eu amava, coisas lindas da hilda hilst. mas essa coisa de tudoaomesmotempoagora é aflitiva.
Juli! Pensei muito em vc lá nessa peça. Vc ia querer organizar tudo!! hahahaha!!!
Ai, Marta...
Ai, Fernando Pessoa, isso sim!
rsss...
brincadeirinha...
=)
Puxa... Tem umas partes extremamente cruéis, de tão verdadeiras que são...
é, mexe mesmo.
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