terça-feira, 19 de maio de 2009

Artaud e Van Gogh

Campos de Trigo com Corvos (1890)

Esses corvos pintados dois dias antes de sua morte não lhe abriram, mais que suas outras telas, a porta de uma certa glória póstuma, mas abrem à pintura pintada, ou melhor, à natureza não-pintada, a porta oculta de um além possível, de uma realidade permanente possível através da porta aberta por Van Gogh de um enigmático e sinistro além.

Não é comum ver um homem, com o tiro que o matou no ventre, cobrir uma tela de corvos negros, tendo abaixo uma espécie de planície lívida talvez, vazia, de qualquer forma, onde a cor de borra de vinho da terra se confronta violentamente com o amarelo sujo do trigo.

Mas nenhum outro pintor, a não ser Van Gogh, saberia encontrar, para pintar seus corvos, esse negro de trufas, esse negro de “ricofestim” e, ao mesmo tempo, como que excremencial das asas dos corvos surpreendidos pelo clarão descendente do crepúsculo.

E, embaixo, de que se queixa a terra sob as asas dos corvos faustos, faustos apenas para Van Gogh, sem dúvida e, por outro lado, faustoso augúrio de um mal que já não o atingira?

Pois ninguém, até então, havia como ele transformado a terra nessa roupa suja retorcida de vinho e empapada de sangue.

O céu do quadro é muito baixo, esmagado, violáceo como as margens de um raio.

A tenebrosa franja insólita do vazio se elevando após o relâmpago.

Van Gogh soltou seus corvos como os micróbios negros de seu baço de suicida, a poucos centímetros do alto e como se viessem por baixo da tela, seguindo a negra cicatriz da linha onde o adejar de sua rica plumagem faz pesar, sobre o turbilhão de tempestade terrestre, as ameaças de uma sufocação vinda do alto.

E apesar disso, todo quadro é rico.

Rico, suntuoso e calmo, o quadro.

Digno acompanhamento para a morte daquele que, em vida, fez girar tantos sóis ébrios sobre tantos montões de feno rebeldes e que, desesperado, um tiro no ventre, não soube deixar de inundar de sangue e de vinho uma paisagem, molhar a terra com uma última emulsão, ao mesmo tempo alegre e tenebrosa, com gosto de vinho azedo e vinagre talhado.

É por isso que o tom da última tela pintada por Van Gogh, ele que, por outro lado, nunca ultrapassou a pintura, consegue evocar o timbre abrupto e bárbaro do drama elizabetano mais patético, passional e apaixonado.

É isto que me toca mais em Van Gogh, o maior pintor de todos os pintores, e que, sem ir além do que se fala, e que é a pintura, sem sair do tubo, do pincel, do en-quadramento do tema e da tela para recorrer à anedota, à narrativa, ao drama, à ação de imagens, à beleza intrínseca do assunto ou do objeto, conseguiu apaixonar a natureza e os objetos de tal forma que qualquer conto fabuloso de Edgar Poe, Herman Melville, Nathnaël Hawthorne, Gérard de Nerval, Achim d’Arnim ou Hoffmann não supera, no plano psicológico e dramático, suas telas de quatro cêntimos, quase todas as suas telas, aliás, e como que de propósito, de medíocre dimensão.

(trecho de Van Gogh. O Suicidado da Sociedade, de Antonin Artaud)

3 comentários:

Marta disse...

eu MUITO sugiro a leitura desse livro.

Unknown disse...

marta, te amo!


ana sol

Marta disse...

=)

beeeeijo!